sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Hormonização

 Bem, esse é um texto bastante particular. Vou relatar um pouco da minha trajetória e minhas dificuldades em relação a esse processo. Lembrem-se, essa é minha vivência, minha experiência, não é igual para todes.

A hormonização é um processo medicamentoso que visa adequar os hormônios do corpo de uma pessoa, para que fisicamente aconteçam mudanças desejadas ou esperadas pela pessoa em questão. Muitas mulheres e homens trans e travestis optam pela hormonização visando uma maior passabilidade. Mas o que isso, passabilidade?

Passabilidade é um termo utilizado para definir se uma pessoa possui os aspectos físicos socialmente esperados para uma pessoa de determinado gênero (nesse caso, homem ou mulher). Ou seja, se ela se parece exatamente com a imagem que a sociedade tem de homem ou mulher. A passabilidade não é uma obrigação, é um direito e um desejo da pessoa trans, porém, a sociedade e até mesmo algumas pessoas dentro da comunidade LGBTQPIA+ exigem que a pessoa transgênero tenha passabilidade. 

Isso é bem complicado, pois, o fato da pessoa não ser passável, gera inúmeros desconfortos em sua vida, além do mais, inevitavelmente ela estará exposta a perigos que sabemos que existe. Isso não deveria acontecer, essa imposição da passabilidade, mas acontece e precisa ser desconstruída. 

Nem todas as pessoas trans desejam ser passáveis, cada uma tem seus desejos, anseios e necessidades, e ainda há pessoas não-bináries que muito comumente não se importam tanto com a forma que seus corpos têm. 

Bem, voltando... A hormonização é um processo químico vitalício, ou seja, uma vez iniciado é para sempre. Obviamente, existem casos em que a pessoa por algum motivo, seja clínico, ou financeiro, ou de qualquer outra natureza, precisa interromper esse procedimento. E o que acontece? Bem, até onde vão meus conhecimentos sobre isso, sei que pode ou não haver uma reversão de alguns aspectos, claro que tudo acontece de forma lenta, e outros aspectos, uma vez desenvolvidos, são permanentes. Então, é preciso pensar muito bem a respeito da hormonização e nunca, jamais, em hipótese alguma, optar por um procedimento sem acompanhamento de um profissional da saúde.

Durante os primeiros meses da hormonização acontece um milhão de coisas. Por isso é importante ter acompanhamento médico. Muitas mudanças são perceptíveis por nós mesmes, outras não, só são detectadas através de exames e ignorar esse cuidado extremamente necessário, pode causar sérios problemas de saúde e até uma fatalidade.

Estou no início da minha hormonização. Logo nas primeiras semanas fui tomada por uma neura terrível, chorava sozinha, pensava a respeito das mudanças lentas e de como iria me apresentar para as pessoas, como iria fazer para me "assumir" para as pessoas que já conheço e como faria para mudar a imagem que já possuem de mim, um verdadeiro turbilhão girava na minha cabeça, foi tão intenso que desisti. Joguei os medicamentos fora, me senti arrependida de ter começado e pensava em assumir uma postura cisheteronormativa. Era mais fácil, não daria muito trabalho, não para lidar com a sociedade, entende? Mas em meu intimo, estava magoada comigo mesma, e não sabia o motivo real. Acontece que depois de muitíssima reflexão, eu decidi retornar à hormonização, mas dessa vez, com toda certeza do mundo.

Antes dessa pausa eu tinha um corpo imaginário que desejava conseguir, hoje não. Não tenho muitas expectativas, prefiro pensar nesse processo como uma longa jornada. Um desafio para mim mesma, como tentar escalar o Everest, até onde conseguir chegar está ótimo. Mas entenda que isso não veio do nada. Tive de ser sincera comigo mesma, tive de avaliar meus medos e meus preconceitos, tive de pesar as relações que tenho com amigos, familiares, colegas de trabalho e etc. Não é um processo fácil, não é rápido, mas está sendo muito satisfatório. Eu exclui da minha lista de contatos muitas pessoas que se mostraram avessas a minha transição, desconectei-me de inúmeros familiares e me aproximei de pessoas com mais empatia, é importante ter essa percepção. Sabe, durante muito tempo fiquei preocupada com a questão familiar, porém, depois entendi que família não são as pessoas que possuem o mesmo tipo sanguíneo, que compartilham do seu DNA, mas sim pessoas que te apoiam, que te amam, que torcem por você e que nunca te abandonam, ter seu sangue até mosquito tem. Amigues, você escolhe, acredite. Não tem motivos para você manter uma amizade tóxica, que só te faz sofrer, que te reduz, que te impede de ir em frente... Escolha suas amizades.

Bem, e por que eu optei pela hormonização se me identifico como uma pessoa não-binárie? Então, como disse mais acima, pessoas não-bináries, de um modo geral, não possuem um padrão definido de corpo atrelado ao gênero, nós não-bináries temos desejos e expectativas em relação aos nossos corpos, no entanto, eles não correspondem ao padrão cisnormativo. Sim, isso quer dizer que há possibilidade de você conhecer uma pessoa não-binárie com nome feminino e que use pronomes femininos, mas que possua barba, ou uma pessoa que se use os pronomes masculinos, mas que possui características ditas femininas. Gênero não tem a ver com corpo, nem com sexualidade, é importante esclarecer isso. Então, percebendo que meu corpo de nascimento não me agradava, decidi me hormonizar.

Eu me sinto bem quando uso e quando usam comigo, pronomes neutros e femininos, e quero desenvolver características físicas com as quais não nasci, mas sem predefinição. No meu caso específico, sei que por conta da idade, muitas características que eu desejava, não serão alcançadas, mas como disse, não me apego mais a isso, se vier, maravilha, se não vier está tudo bem. E ainda falando sobre meu caso específico, quero fazer uma cirurgia para diminuir a cartilagem da traqueia, mas isso é um capricho estético meu.

Seria muito hipócrita da minha parte se dissesse que estou feliz com meu aspecto atual, não estou. Por conta disso, estou sempre experimentando processos estéticos, enaltecendo minha vaidade e mudando minha aparência, ainda não achei meu rosto ideal, mas sigo tentando. Uma coisa que percebi foi a relação que tenho com meu cabelo, fico muito triste quando por algum motivo não consigo ir ao salão fazer aquele retoque básico. Mas isso não tem a ver com a hormonização em si, isso é um desejo pessoal, é uma necessidade de foro intimo.

Existem tantas regras impostas na sociedade, que as pessoas acabam nem vivendo suas vidas com medo de retaliação, ou isolamento, ou coisa pior. Nós vivemos acovardades sob as regras de uma sociedade hipócrita e mesquinha, que institui padrões o tempo todo e nos obriga a seguí-los sem se importar com o que realmente desejamos, a todo momento são criadas pseudonecessidades e despejadas sobre nós, e nós, complacentes, aceitamos tudo. Por muito tempo... Mas agora não dá mais. Eu tenho uma forte convicção de que precisamos viver nossas vidas do jeito que queremos, sem fantasiar, sem se esconder e sem represálias. Claro que não vivemos num conto de fadas e para conseguir isso, precisamos suar mais que as pessoas conformistas. Temos barreiras monumentais pela frente, mas precisamos entender imediatamente, que não estamos sozinhes, unides podemos transpor essas barreiras, devagar, com consciência, com segurança e com muita solidez.

Quando eu falo sobre enfrentar os padrões sociais, não estou estimulando as pessoas a saírem nas ruas afrontando toda forma de opressão, sozinhe, de peito aberto e sem calcular as consequências. Mas não podemos nos acovardar. Existem mecanismos que podemos usar em nosso cotidiano para mostrar para as pessoas que existem outras realidades e que elas devem ser respeitadas. Cada ume precisa lutar, fazer sua parte, mas não queremos que ninguém arrisque sua vida de forma displicente, né?

Antes de começar a hormonização, eu já cuidava dos meus cabelos, esporadicamente ia para a escola com as unhas pintadas de cores bem marcantes como : vermelho, prata, rosa e branca. E isso gerava muitos questionamentos e comentários, mas eu não me importava com isso não. O que mais me chateia na escola, é a definição estrutural de deveres e direitos masculinos e femininos, acho isso um absurdo. E inúmeras vezes briguei por conta disso, apresentando ideias que rompiam esses preconceitos, mas nunca foram colocadas em prática, afinal, as diretoras com quem trabalhei, apesar de serem boas profissionais, nesse aspecto são muito retrógradas. 

Bem, mas por que estou falando essas coisas? Para que vocês tenham noção que a transição não se inicia na hormonização. Ela inicia no momento em que você passa a questionar seu gênero. E a partir desse momento, o caminho rumo a sua ascensão está posto à sua frente. Alguns caminhos são mais curtos e mais rápidos, outros não. Mas isso não é uma corrida, não existe um tempo limite para se fazer esse caminho, até porque ele só acaba quando você morre. Então, não precisa se desesperar, não precisa se chatear porque os resultados estão demorando e tal. Tudo ao seu tempo e sempre supervisionado por sue médique.

Antes que perguntem... Não vou colocar a lista de medicamentos que tomo em minha hormonização, justamente para não incentivar uma medicação por conta própria. Cada caso é único e deve ser analisado por uma pessoa especialista no assunto. Ah, antes que eu me esqueça, eu faço todo o acompanhamento pelo SUS, então não precisa ficar desesperade com a questão financeira. 

Peço desculpas pelos pensamentos aleatórios que surgiram no meio do texto, mas minha cabeça é assim, toda bagunçada. rsrsrs

Biejos da Pri ^^!!!

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