quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Estupro Culposo

 


Ontem, nós mulheres, recebemos um duro golpe em nossa essência, em nossa confiança no poder jurídico (que já não era lá essas coisas) e em nossa história.

Depois de uma sessão completamente esdruxula, onde a vítima fora tratada com desdém, humilhada e torturada diante do juiz pela defesa de seu agressor, o tribunal decidiu não acusar o estuprador de Mariana Ferrer, o empresário André Camargo de Aranha.

O júri concluiu depois de todo o interrogatório e análise das provas, que o empresário havia cometido Estupro Culposo, ou seja, não teve a intenção de estuprar.

Gente, isso não existe. Esse crime nem é previsto em lei, por que prevê-lo seria um absurdo. Não existem meios racionais para explicar como alguém estupra sem intenção de estuprar. O crime de estupro se caracteriza exatamente no fato de uma pessoa fazer sexo com a outra sem o consentimento dela. Não importa se ela está inconsciente, dopada, dormindo ou em coma... Sexo sem consentimento é estupro.

A defesa declarou que se ela estava dopada, não tinha como André saber se ela queria ou não o ato sexual com ele. É bem simples na verdade de entender, perguntou e ela disse sim, ok. Perguntou e ela disse, mas depois disse não, se continuar é estupro. Perguntou e ela não respondeu ou disse não, é porque ela não consente. Não existe dúvidas aqui. No entanto, a justiça brasileira conduziu um julgamento onde o alvo era a vítima, e criaram o crime de estupro culposo para não punir o estuprador. Não consigo imaginar o ato de você violar alguém sem a nítida intenção. Sabe por quê? Porque isso não existe.

Esse foi (e ainda é, e continuará sendo) um dia sombrio na história das mulheres, da justiça e da sociedade.

Ser mulher é enfrentar esse tipo de situação: levar a culpa pelo estupro, levar a culpa por agressões físicas, verbais e psicológicas, ser desrespeitada o tempo todo, ser diminuída no mercado de trabalho e nas academias, ser tida como frágil, emotiva, histérica e incapaz de assumir cargos de poder, e quando fazemos, precisamos lutar com lobos a todo momento para evitar um golpe ou um assassinato.

Que tipo de sociedade é essa que permite um absurdo como esse? Que tipo de sociedade dorme em paz quando uma mulher recebeu a culpa que deveria ser atribuída ao seu violador?

Nossa sociedade pune a mulher de todas as formas. Se somos agredidas, vão atrás de infinitas provas que demonstrem que a culpa é nossa. Temos horário para sair e voltar para casa, temos olhos vigilantes o tempo todo em cima de nós, coletando dados sobre nossa futura culpa, somos alvo de olhares que ultrapassam nossas roupas, somos fetichizadas o tempo todo em todos os níveis de existência, não temos liberdade de nos expressar, pois, se o fazemos, somos vadias, as roupas que vestimos são vistas como um convite para abusadores, o ambiente que frequentamos geralmente é usado para produzir algum tipo de mácula negativa sobre nós e ainda somos ensinadas a não gritar, não denunciar e não desconstruir essa visão de mundo violador.

Até quando nós seremos culpadas pelas agressões que sofremos? Até quando seremos forçadas a nos calar diante de atos hediondos? Até quando nossa sociedade vai tratar assédio como uma coisa normal?

Não tenho palavras para expressar a dor e a raiva que sinto hoje. O fato ocorrido com a Mariana é grotesco em todos os sentidos. Vê-la ser desmoralizada diante do júri, e sair como culpada, fará com que muitas mulheres se calem diante de um ato monstruoso como esse. Nem todas possuem a força e a coragem dela, e com a possibilidade de passar por um processo humilhante como esse e ainda ver o estuprador sair ileso, é desestimulante, é estarrecedor e desumano. 

Ao invés de nossa sociedade construir meios de emancipar as mulheres, criar leis justas que diminuam a barbárie e as diferenças entre as camadas sociais, o que acontece?  Sim. Criam meios de punir vítimas e incentivar criminosos a cometerem mais crimes.

Estupro culposo é uma vergonha, é um atentado global contra nossas leis, contra as mulheres e contra liberdade. 

Espero que a sociedade entenda o que está acontecendo e pressione a justiça para que esse caso seja reaberto, pois, não existe explicação para o ocorrido, além de maldade premeditada, corrupção e acordos misóginos. Se deixarmos esse caso passar, muitos outros virão e se repetirão diante de nossos olhos, e nós, assistiremos impotentes. A justiça precisa ser justa, do contrário, não existe motivos para sua existência.

Eu sei que muito do que ocorre no país é culpa do governo atual, pois, ele apoia atrocidades como essas e enxerga a mulher como objeto descartável. Infelizmente essa visão que já contaminava nossa sociedade, agora ganhou mais força e se alastrou ainda mais. Mas não podemos viver reféns de planos de governos que querem nos exterminar, nos tratar como objetos e como fetiches. 

Por favor, sendo você mulher ou não, pense um pouco, empatize-se com as mulheres e ajude-as a se libertarem dessa situação opressora.

Eduquem seus filhos para respeitarem as pessoas, independente de gênero, sexualidade, credo, etnia ou classe econômica, eduquem seus netos, primos, irmãos, sobrinhos, etc... Precisamos de uma força conjunta para romper essas barreiras monumentais que nos cercam. Elejam líderes vinculados aos ideais feministas, humanitários e étnicos, do contrário isso aqui só vai ladeira à baixo.

Não existe sociedade sem colaboração plena de todes que a compõem. Se nós deixarmos que alguém seja excluído categoricamente dos direitos, do progresso e da evolução social, não estaremos vivendo em sociedade. 

Vamos nos unir e pressionar a sociedade por condições dignas de vida, hoje, amanhã e sempre, até a situação mudar.


Beijos da Pri!

6 comentários:

  1. Pri, você como sempre coerente sobre qualquer assunto...
    Orgulho de te ler...

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    1. Obrigada! Fico feliz que tenha conseguido me expressar adequadamente, porque escrever esse texto não foi fácil.

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  2. Priscila foi muito, muito bom ler seu texto sobre esse assunto, qdo vi a reportagem e o trecho da audiência online onde a vítima teve seu lugar trocado com o réu, muita coisa passou pela minha cabeça e uma delas foi que o senso de justiça não existe mais, vi uma mulher jovem, branca, bonita, sendo praticamente acusada por denunciar um estuprador... Eu como negra que sou já me acostumei a ter que provar minha honestidade. Mas ver isso deu até medo de precisar de qualquer coisa da justiça nesse momento.....

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    1. Exatamente Tati, exatamente, a gente precisa provar nossa inocência a todo instante.
      Obrigada por ler e comentar.
      Essa normatização da violência contra nós precisa ser impedida.

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