Lobisomem: o Apocalipse e a transgeneridade

 

Lobisomem: o Apocalipse e a transgeneridade.

Bom, para começar esse texto terei de fazer uma breve apresentação do jogo Lobisomem: o Apocalipse e ao conceito dos jogos de RPG. Vou começar pelo segundo item.

Jogos de RPG, são jogos imaginativos, ou seja, para jogá-los não é necessário instrumentos eletrônicos e outros utensílios que são próprios de jogos de aventura, mas faz-se necessário o uso de alguns dados característicos, com os quais os jogadores contam para realizarem suas ações. Numa sessão de RPG, os jogares constroem seus personagens, dão qualidades, defeitos, habilidades, poderes e etc, e os usam para contarem uma história coletiva com a condução de um narrador ou mestre, tudo isso é feito como se fosse um teatro, porém, a diferença principal reside no fato de que as peças teatrais se iniciam quando todos os atores decoraram suas falas, o enredo da história e após terem ensaiado muito para que a narrativa seja apresentada da melhor forma possível; no RPG não é bem assim, os jogadores não sabem o final da história, não ensaiam falas nem ações, tudo acontece na hora e eles precisam improvisar. O narrador coloca elementos na história e de acordo com as ações dos personagens ele conduz os jogadores para dentro daquele cenário, por isso a história é colaborativa, todos juntos contam a história.

Lobisomem: o apocalipse é um desses jogos. Nesse cenário, o jogador interpreta um “humano” ou “lobo” que possui a capacidade de transmutar-se tornando-se um "monstro", o clássico lobisomem dos filmes e histórias, uma besta combatente que trucida seus opoentes com presas e garras. Os lobisomens possuem dez formas, sendo cinco delas físicas e cinco espirituais.

Esses personagens começam o jogo geralmente sem muitas informações de quem verdadeiramente são. Mas após a primeira mudança, eles acabam percebendo que não são como os outros ao redor deles, que seus semelhantes não são tão semelhantes assim, e aí nasce um grande problema. Comumente, numa situação dessas, o personagem passa a temer por sua própria vida, pois, sabe que a monstruosidade que ele é não pode ser compreendida pela aceitação da realidade daqueles que ele julgava serem seus semelhantes e justamente por isso ele se vê como um monstro; paralelo a isso, ele passa a temer por seus entes queridos, pois, a sua presença diferente coloca em ameaça a vida de seus semelhantes, a sua existência torna-se perigosa para a existência daqueles que são diferentes dele, mas por que exatamente?

O universo do jogo trabalha muito com a diferença de ideias e culturas, tanto que há definições distintas para os personagens os classificando de acordo com sua herança ancestral/cultural, a lua sob a qual ele nasce e a sua genética. Quando uma personagem se vê diferente no seu próprio contexto histórico-social, ele sabe que o sistema ou as leis da selva, o apontarão como um invasor daquele espaço, como um perigo eminente, como uma aberração, afinal, é sempre assim que acontece, não é? Tanto o lobisomem quanto a pessoa trans teme pelos seus familiares por conta da ordem social não compreender que não existe perigo na existência deles, e eles sabem disso. Quando você acolhe o monstro, invariavelmente você se torna parte monstro também, ao menos aos olhos da massa social.

A jornada de um lobisomem geralmente se define em encontrar outros lobisomens que o aceitem, onde ele se liga a membros de uma sociedade paralela e secreta à que ele vivia, a qual na vida eu real eu chamo de "Vale". Essa jornada também é o tema de sua autodescoberta, na qual ele entende aos poucos qual é o seu propósito, sua importância e sua verdadeira essência; quando ele finalmente aceita a fera que é - aos olhos da sociedade- e acolhe sua bestialidade, ele passa a viver em paz e feliz junto aos seus novos semelhantes.

Creio que não é difícil perceber onde quero chegar com esse texto, não é mesmo?

Assim como os lobisomens desse jogo, as pessoas transgênero nascem numa sociedade que não os enxerga, não os aceita totalmente e não faz questão de compreendê-las. E a medida que elas vão se descobrindo, vão percebendo que são diferentes das pessoas inseridas no sistema heterocisnormativo, surge um desconforto interno intrincado a um medo crescente, medo esse de se revelar como alguém dotada de uma condição tida como bestial pelo sistema opressor e medo de colocar em risco toda a estrutura sob a qual foi criada unicamente por ser quem é.

As pessoas transgênero trazem dentro de si uma condição que transcende à aparência, a denominação e condição imposta a elas ao nascer – e as vezes até antes disso – e toda transcendência é desconfortável, obviamente pelo fato de ter que se desprender de conceitos enraizados na sociedade, ter que deixar para trás um avatar que lhe ensinaram a reconhecer como sendo seu, mas que na verdade nunca foi.

A pessoa trans tal como o lobisomem passa por uma primeira mudança, momento em que se descobre que é diferente - e apesar do jogo sugerir que isso aconteça na adolescência, deixa claro que pode acontecer em qualquer idade, ora só, mas que coisa, né?

 Depois disso vem a fase de enfrentamento dos conceitos introjetados nela, o enfrentamento de sua real condição, é onde essa pessoa coloca a realidade padrão e a realidade essencial para se enfrentarem… Esse é um dos piores momentos que existe, visto que, a carga emocional que acompanha os questionamentos é imensa e geralmente a pessoa a recebe sozinha, o que muitas vezes desencadeia uma porção de sensações negativas que se espalham e se engendram em seu ser. O medo do abandono, o medo do desconhecido, a inevitável sensação de perigo constante, o temor de perder seus entes queridos, de não encontrar um lugar para chamar de seu, de não encontrar ninguém que a compreenda e a aceite etc.

Quando um lobisomem encontra outros como ele, passa a aprender a viver com sua nova essência e percebe que não há nada de errado com ele, ele é apenas diferente. E sendo a sua antiga vida pautada numa norma excludente, percebe que seu lugar não é mais nela e sim junto aos seus; quando ele finalmente aceita que não precisa obedecer o sistema para fingir ser alguém que não é, que ao invés disso, pode viver sendo quem é verdadeiramente e cumprindo seus propósitos, encontra seus iguais e por fim, sua ascensão. Exatamente a mesma jornada de uma pessoa trans. Não é incomum ouvirmos histórias de pessoas transgênero que passaram por tantas dificuldades que são muitas vezes inenarráveis, isso depois de terem se dado conta de que eram trans, ou até antes de se perceberem, mas sendo percebidas pelas pessoas cisgênero.

Quando uma pessoa trans se compreende trans ela precisa encontrar uma rede de apoio, do contrário, ou ela é engolida pelo “Cistema” e definha em agonia e tristeza, ou simplesmente encontra o seu fim físico. Quando ela encontra a rede de apoio, ela passa a trilhar um novo caminho, uma jornada de crescimento pessoal, de realizações únicas, de exploração de um novo mundo até então desconhecido. Tal como no jogo de lobisomens, a pessoa que encontra seu caminho não aceita mais voltar para a prisão social de onde partiu e por isso, por não aceitar se enquadrar às regras de "pureza social" - lê-se, raciocínio nazifascista e eugenista -, ela se torna um monstro para a sociedade, uma besta, uma fera repleta de brutalidade e degeneração… O diferente é excluído não porque é incomum, mas porque expõe os iguais. Quando a massa é exposta, seus conchavos sujos, seus contratos sociais inumanos e suas práticas sórdidas ficam em evidência e a massa não tem coragem de se expor, de admitir que é preconceituosa, segregacionista e excludente, por isso não permite o diferente em seu meio.

O jogo de lobisomem trabalha muito com a diversidade. Existe uma diversidade de culturas, crenças, fenótipos, heranças ancestrais, conhecimentos, habilidades, categorias de espíritos e atribuições pessoais. Um lobisomem é o ser mais diversificado que existe e quando ele se dá conta disso, todo tipo de contenda social, discriminação, preconceito, ódio e segregação simplesmente desaparece.

Percebe? O jogo de lobisomem é basicamente uma jornada transgênera, na qual os personagens vão se descobrindo, crescendo e se aceitando, junto a isso vão auxiliando outros a encontrarem seus próprios caminhos. E sabe o que é mais legal? Os lobisomens são seres mágicos, criados pela força vital do planeta Terra para combaterem os males que destroem o planeta diariamente. São seres que tentam fazer a massa se comportar de forma amigável com o ambiente e com os outros seres, óbvio que seriam tratados como inimigos - aberrações, monstros, feras etc - da civilização, né? E sabe qual é o paralelo disso? Exatamente… As pessoas trans, não incomumente, estão engajadas em movimentos sociais que lutam pela liberdade e pela harmonia, buscam a convivência pacífica entre todos os seres humanos, que todos tenham aceitação plena da condição humana de cada um de nós.

Essa análise eu fiz durante anos jogando e narrando LOA (Lobisomem: o apocalipse), coincidentemente, minha transição deu-se num momento em que eu já estava amplamente integrada ao jogo e ao metaplot dele, fato que me fez perceber minha própria essência e a origem do meu incômodo para com a sociedade que me oprime diariamente por ser diferente do que a norma padrão prega.

O RPG é indiscutivelmente uma ferramenta de educação, de percepção do meio e auto avaliação, pois, invariavelmente criamos personagens que gostaríamos de ser caso fosse possível em nossa sociedade existirmos da forma que realmente somos. E isso é valioso demais para a autoconstrução de uma pessoa, para sua jornada de emancipação. Durante um jogo, uma brincadeira, podemos perceber nossa essência e transpor nossos medos através de ações ensaiadas numa tarde de domingo ao redor de uma mesa. Digo isso porque após tantos personagens criados e analisando-os anos à fio, pude perceber o quanto minha pessoa interior gritava desesperada tentando sair para o mundo, exatamente como as feras que residiam corpos humanos dentro dos jogos.

Esse jogo é uma ferramenta justamente por trabalhar com a sua própria consciência, sua bagagem, sua essência e isso traz à tona nuances do nosso subconsciente que qual alguma técnica podem ser lidas e interpretadas. É um jogo onde você se constrói, não mais usa histórias e personagens prontos.

Para finalizar, quero deixar claro que essa é minha análise e que você não precisa concordar, mas os criadores do jogo já deixaram bem claro que: criaturas transmórficas não possuem mecanismos mentais limitantes de segregação, visto que elas mesmas não se encaixam em moldes, caixas, padrões estabelecidos pelas sociedades que as rodeiam. E como não poderia ser diferente e mais hilário, eu sou tanto uma defensora e militante do jogo Loa, como também ativista das causas Trans. Em meu ser transgênero pulsa o coração metamórfico de um lobisomem. E por isso defendo e recomendo os jogos de RPG como ferramentas de instrução e autoconhecimento, inclusive em práticas psicanalíticas e pedagógicas, pois a interação do ser consciente com seu avatar revela dados precisos sobre sua verdadeira essência.

Claro que ainda existem muitos pontos a serem esclarecidos e vinculados à transgeneridade, mas o texto ficaria imenso e esse não é o meu propósito. Obviamente retomarei esse assunto no futuro, mas até lá, desejo a vocês tudo de bom e deixo a seguinte reflexão… 

Por que te incomoda uma pessoa ser diferente de você?

Beijos da Pri! ^^