Para quem não sabe, sou afroindígena e as questões culturais, étnicas e ancestrais me atraem muito. Mas quando falamos sobre isso, tudo parece distante, anacrônico, e de fato a maioria das discussões ou informações são mesmo. Então, pensando na mulher contemporânea, após muitos debates com radfems e feministas liberais, cheguei até a seguinte problemática: como funciona o feminismo e outras propostas igualitárias para mulheres camponesas, quilombolas e indígenas?
Bem, a grande questão é, como os movimentos igualitários, as propostas humanistas e antisistemicas chegam até as pessoas não urbanizadas?
Não chega. Simples assim, Lei Maria da Penha e outras leis ou medidas protetivas não funcionam para camponesas e aldeadas. As mulheres indígenas sofrem tanto abuso quanto uma mulher branca urbana, e esses abusos são físicos, morais e psicológicos, e geralmente na maioria dos casos são oriundos de pessoas próximas, como: maridos, pais, irmãos etc.
Entre 2007 e 2017, foram registrados 8.221 casos de violência contra mulheres indígenas. Um número assombroso, se pensarmos na proporção de mulheres indígenas identificadas pelo censo, que é algo próximo de 448 mil, e que a maioria não efetua denuncias por diversos motivos.
Recentemente temos visto casos brutais de violência e assassinato contra mulheres indígenas, e algumas delas eram apenas crianças ou adolescentes. A agressão não tem fim, ao contrário, ela cresce desenfreadamente.
Quando uma mulher indígena é alvo de violência, ela encontra barreiras monumentais antes de efetuar a denúncia, algumas delas são: a distância entre a aldeia e o posto de denúncia, problemas linguísticos, racismo no atendimento, misoginia por parte dos responsáveis por coletar os dados sobre a agressão/violência, o desconhecimento de seus direitos como mulher e também o fato de que, após a denúncia, ela precisa voltar para seu lar, onde o agressor está e sem a certeza de que seu problema será ouvido ou resolvido. O risco de que o agressor descubra que foi denunciado e a ataque novamente, muitas vezes de forma letal, é enorme, e isso já é um grande limitador de denúncias.
Quando pensamos em políticas públicas e de proteção à mulher, invariavelmente e de forma muito capciosa, somente as mulheres urbanizadas são prontamente contempladas. O ciclo de violência se perpetua nas falhas da lei, mas isso precisa mudar.
Há alguns anos, foram criadas cartilhas com os direitos das mulheres e com algumas leis de proteção, incluindo a Lei Maria da Penha, direcionadas para povos indígenas que falam os idiomas Terena e Guarani. É um passo importante, mas não pode parar por aí, são mais de 247 idiomas originários falados no Brasil e todos os povos precisam conhecer seus direitos.
O ciclo de violência contra a mulher indígena/quilombola muitas vezes é visto como cultural. O que é uma grande falácia. Violência não é cultura, é crime e tem de ser impedida.
Autoras feministas da modernidade conseguiram ver além do padrão branco/classe média e inclui em seus discursos a militância pelas mulheres pretas e periféricas, mas ainda são raros os discursos em favor das mulheres com deficiência, transgênero, indígenas, quilombolas e camponesas. Este é um assunto que tem rendido muitas discussões pelas redes, e revelado muitas reacionárias infiltradas nas colunas feministas.
Muitas radfem dizem que indígenas não devem ser contempladas pelo feminismo, pois, vivem em cultura diferente, onde o gênero feminino não é empregado. É mesmo? Estranho isso, porque desde os mitos mais antigos até as memórias mais recentes, mulheres sempre tiveram papeis de importância em tarefas comuns, sim, existem divisões de trabalho por gênero em culturas indígenas, mas não são divisões instituídas, como ocorrem em nossa sociedade, é praticamente orgânico.
O problema sobre políticas públicas não está só nos discursos reacionários, conservadores e tradicionais, está implantado na cabeça de intelectuais que se dizem revolucionários também, mas que nunca olharam para essa questão. Nossa política é bizarra no que se refere a direitos, principalmente das mulheres. A sombra da misoginia e do patriarcado se agiganta sobre a legislação ofuscando nossa liberdade, nosso direito de existir e de resistir.
Então, não é só o feminismo que precisa se reformular, mas todas as propostas igualitárias e toda nossa política de direitos públicos.
O que será bem difícil diante de infodemia de discursos intolerantes apoiados por um genocida idolatrado como patriota.
Por isso, os movimentos de resistência precisam mais que nunca atuar em função dessa desconstrução patriarcal e romper o ciclo de violência contra as mulheres que não estão inseridas no padrão liberal. Proporcionar conhecimento é o início, mas temos de ir mais longe, pressionar governantes para que medidas protetivas sejam implantadas em auxilio a essas mulheres.
E aí, seu feminismo engloba as mulheres negras, trans, com deficiência, camponesas, periféricas, indígenas e quilombolas? Ou só a galerinha do centro da cidade?
Se não abraça todas as mulheres não é feminismo. Se não serve para todas as mulheres, não se trata de políticas públicas, mas sim de privilégios a um grupo.
É isso, espero que esse texto tenha servido para te ajudar a pensar em determinados contextos até então ignorados por ti.
Beijos da Pri!!! ^^
Achei interessante a abordagem do texto, na verdade é alarmante, sou advogado e nunca pensei na aplicação da lei Maria da Penha por esse prisma. É preciso haver uma desconstrução de todos, juízes, delegados, policiais, assistentes sociais e outros profissionais. Você foi muito feliz ao abordar esse assunto.
ResponderExcluirObrigada Jeronimo.
ExcluirÉ uma reflexão necessária e urgente. E como você disse, precisa acontecer imediatamente uma desconstrução a nível celular esse sistema.
É triste né honey?
ResponderExcluirE muitas pessoas que tentam trabalhar políticas públicas dentro das aldeias são colocadas para fora.
Não existe cultura de violência. Esses traços brutais precisam sim serem extintos.
Siiimmm... Verdade. Agentes sociais são ameaçados e expulsos.
ExcluirConcordo completamente com você, violência não é cultura. E tem de ser barrada sim.
Caram Pri, que texto forte. Nunca tinha passado pela minha cabecinha branca, burguesa e urbana que isso acontecia. Obrigada por isso.
ResponderExcluirEu sei que não, e nem é por mal às vezes, mas só às vezes.
ExcluirEu que agradeço.