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terça-feira, 1 de junho de 2021

RPG como ferramenta de conscientização

 


Jogo RPG desde a adolescência, ou seja, lá pelo início dos anos 2000. E sempre vi no jogo um potencial maior que a pura e simples diversão, mas obviamente não deixava essa parte de lado, nenhum pouquinho. 


O fato é que, sempre que jogava, os narradores abordavam temas abstratos e fantasiosos distantes de nossa realidade, e esses jogos eram bons, mas só serviam para diversão mesmo. No entanto, em meio a esse ambiente fictício percebi que poderia criar personagens elaborados e que trariam maior dramaticidade às histórias. 


E esse é o ponto. Enquanto todo mundo da mesa jogava com vampiros masculinos, de cabelos lisos e traços delicados, eu criei uma mulher de pele escura, com fenótipo árabe e cabelos raspados na lateral esquerda. Foi muito legal ver a reação da galera quando apresentei minha personagem, quebrou os parâmetros da mesa. 

Depois disso fiz diversas personagens, e todas elas tinham algo para acrescentar na história, as vezes por conta de etnia, por possuir uma deficiência, por ter uma sexualidade não esperada e etc. 

 

Quando comecei narrar RPG, decidi que levaria elementos sociais para dentro de minhas histórias, então sempre que surgia a oportunidade, os jogadores se deparavam com algum tema social, como: racismo, homofobia, maus tratos aos animais, mentiras, corrupção, distorção dos discursos religiosos e obviamente a sobrenaturalidade que não podia faltar. 


Foram muitos anos divertidos narrando vampiro, mas depois que descobri Lobisomem e Mago, me apeguei demais a esses cenários, são mais reais e dá para explorar muito mais situações, até porque, são seres mortais dotados de sentimentos reais, não são mortos vivos com mais de cem anos. 


Eu faço narrações até hoje e jogo quando surge um mestre. Gosto muito de ver como os jogadores resolvem essas questões que aparecem no meio da quest. E sempre estimulo a criação de personagens interessantes, personagens complexos que fogem dos estereótipos. 


O RPG é um jogo de interpretação de personagens, como num teatro, no entanto, difere-se por conta de que a história é criada em tempo real conforme as ações dos jogadores. E enquanto está rolando a sessão, os jogares são seus personagens, precisam interpretá-los, e é aí que toda a mágica acontece. 


No jogo, qualquer pessoa pode interpretar qualquer personagem. As características de quem interpreta podem ser completamente diferentes da personagem, por exemplo: Um rapaz branco, magro, heterossexual e católico, pode interpretar uma mulher negra, ateia e bissexual. Claro, desde que se comprometa a não estereotipar a personagem e criar uma imagem erroneamente padronizada apresentada por nossa sociedade. 


Isso é legal porque no jogo as pessoas são livres para interpretar, para serem quem são, para perceber outras realidades, para se empatizar com outras vivências etc.  


Imagine o rapaz do exemplo ali de cima interpretando a personagem dele. Ela está caminhando normalmente pela rua e aleatoriamente recebe uma pedrada de um homem branco supremacista (lê-se Skinhead), única e exclusivamente por ela ser preta. A narração pode explorar os sentimentos da personagem através das ações e falas de quem a interpreta. Com algumas perguntas precisas, quem narra pode fazer com que a pessoa que interpreta a personagem se coloque verdadeiramente no lugar dela e experimente a realidade de uma pessoa que pertence àquele grupo. 


Situações corriqueiras que não nos atentamos podem colocar os jogadores para pensarem e agirem em conjunto na tentativa de minimizar um mal físico, um constrangimento, uma situação degradante etc... 

Certa vez estava narrando para um grupo só de garotos, eram quatro no total. Dois deles interpretavam personagens femininas e dois interpretavam personagens masculinas. O legal é que as mulheres eram solteiras e os homens estavam em um relacionamento fixo. 


Deu-se que eles precisaram se afastar do local de onde moravam e rumaram para muito longe, passaram quase dois anos distantes, o grupo todo. Nesse meio tempo uma das garotas teve um relacionamento com um dos garotos e a personagem engravidou. 

 

Foi muito legal ver como o rapaz que interpretava a moça tentava arrumar argumentos para que o outro assumisse o filho deles, e o rapaz se recusava a todo custo, dizendo que isso acabaria com sua vida de aventureiro, mas ao mesmo tempo, tentava arrumar argumentos para fazer com que a mulher não ficasse chateada ou brava com ele. A cena para mim era a seguinte: Um casal que se gosta tentando manter seus laços, porém, um lado queria assumir a família e o outro não. E o melhor de tudo, eram dois homens interagindo. Belas memórias. Bem, não acabou aí... 


Esse casal se resolveu e decidiram seguir a vida juntos, e o rapaz prometeu que ao voltar terminaria formalmente com sua namorada, que o amava incomensuravelmente.  


A outra dupla não se relacionava muito bem, eram opostos e viviam brigando, só um detalhe, os jogadores eram irmãos, e é engraçado porque muitas discussões que nasciam no jogo vinham da vida deles e de algum modo eles se resolviam em jogo. 


Bem, quando o grupo voltou os jogadores que interpretavam homens foram conversar pela primeira vez em dois anos com suas namoradas. Uma havia morrido e a outra estava casada. Eles ficaram chocados... rsrsrs... Mas perceberam onde haviam errado, dois anos, nenhuma ligação, nenhuma notícia, silêncio total, a realidade não para só porque eles não se dão conta dela. O personagem cuja namorada havia morrido ficou triste, e o interprete também, por não poder se despedir, e o outro ficou irado por ser trocado sem prévio aviso, mas depois entender que o erro foi dele. 


Bem, esse é só um exemplo. Mas já coloquei uma personagem homossexual em uma situação de humilhação pública para ver qual seria a reação dela e do grupo, e devo dizer que felicitei-me muito por que o grupo todo reagiu em favor dela, e levantaram argumentos muito precisos e pontuais para o momento. E no final da sessão eu ouvi de um dos jogadores “Nossa, só de pensar que isso acontece fora da mesa dá uma raiva...” Compreende? Ele absorveu o sentimento e pensou em outras pessoas que verdadeiramente passam por situações degradantes todos os dias. 


É legal também trabalhar RPG com crianças. Uma vez narrei para um grupinho de três crianças. Era uma fantasia medieval, elas eram aventureiros e caçavam tesouros. Encontraram um elfo bonito, mas maltrapilho, dizendo que havia sido roubado por um orc feio e fedido. As crianças decidiram ajudar o elfo a caçar o orc, mas quando o encontraram se depararam com uma situação completamente invertida. O elfo era o ladrão e estava de olho na bolsa de ouro que o orc carregava, e por conta do mal julgamento das crianças, o orc ficou sem dinheiro para comprar comida para seus filhos, e quando elas o viram chorar e reclamar, deram tudo o que tinham para ele e pediram desculpas por se deixarem serem enganadas pela aparência, e aí caçaram o ladrão e pegaram o ouro de volta. 


Conceitos como beleza, transgeneridade, vegetarianismo, machismo, feminismo, degradação ambiental, homossexualidade, deficiências, sentimentos, exploração, escravidão, racismo, indiferença, são ótimos gatilhos para sessões mais profundas. 


Quando comecei minha transição achei que meu grupo iria se dissipar por não entenderem minha situação, minha realidade, porém, foi absurdamente o contrário. Quando me reuni virtualmente com todes, porque estávamos já em lockdown, expliquei a situação e ouvi de um deles “Pra mim não muda nada, você sempre foi assim no jogo, e eu sempre te vi assim” e de outro “Pra mim também, só que agora saiu do jogo.”  

Quer dizer... Durante anos interpretando personagens fora dos estereótipos e colocando NPCs com essas características serviu para preparar minha mesa para um evento real.  


O RPG é um jogo, mas não é só isso, é um espaço de interação, de exploração da sua psiquê e da sua persona, e além disso, exploração das ações humanas, das relações de grupo e da empatia que cada um carrega para com determinadas classes de pessoas e/ou animais.  


Posso dizer de acordo com minhas experiências que as sessões de RPG são como vidas paralelas, mas segundo uma perspectiva não euclidiana, onde as paralelas podem se cruzar, e isso acontece muito nos jogos de RPG, a vida real e a fictícia se unem em algum ponto, transformando as experiências de vida de quem joga ou narra. 

Então, além de se divertir com uma galera, você pode usar o RPG como uma ferramenta de conscientização, sendo você jogador ou narrador, basta inserir os temas que deseja trabalhar, com cuidado e responsabilidade.

 

Viva o RPG! ^^ 


Beijos da Pri. 


PS: Tenho um canal no Discord (plataforma para se jogar rpg on-line), e se quiser participar é só deixar seu pedido aqui.

2 comentários:

  1. Adorei o texto Pri!!! Um dia vou jogar RPG com vc. Nunca joguei....

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