Liberte-se - Bulimia
"Respeite a escolha de qualquer pessoa.
Bem, depois de ler essa magnífica letra de punk-rock de uma das bandas mais brilhantes do Brasil, podemos começar a conversar.
Repare que a letra e o título dessa postagem estão idealmente alinhados. Bem, se você acompanha o blog desde o início já deve saber que sou uma pessoa não-binária com expressão de gênero feminino, mas se você está por aqui a pouco tempo, bem, acabou de saber. No entanto, nem sempre me identifiquei assim.
Durante muito tempo da minha vida vivi sob um papel, gênero e nome imposto, e tudo isso pesava em meu inconsciente de forma aterradora. Sempre tive problemas com insegurança, depressão, baixa autoestima e autossabotagem. Isso porque eu não acreditava em mim, em minha vida, em meu papel social, era como se realmente interpretasse um papel numa peça teatral.
Quando se vive dessa forma, os problemas se acumulam e as soluções não surgem. Tudo o que eu tocava parecia virar fumaça. Todos meus planos eram baseados na receptividade de outras pessoas e nunca para mim mesma. Isso me deixava infeliz e o tempo todo frustrada, esgotada mental e emocionalmente, tanto que pouco esforço eu fazia para as coisas acontecerem, deixava a vida seguir seu próprio fluxo, e ia me encaixando na correnteza completamente conformista. Eu não via saída, nem soluções, era como estar realmente morrendo, ou no melhor cenário, seguindo um rebanho.
Desde muito cedo, no início da adolescência, eu identifiquei minha transgeneridade, no entanto, não tinha bagagem para me compreender, nem para me expressar, e isso era imensamente angustiante. Cada dia vivido era tido por mim como um dia a menos, e não a mais. Sim, era uma verdadeira contagem regressiva. E eu sabia que estava perdendo tempo, só não sabia o que eu tinha de fazer, não conseguia entender minha angustia e meu deslocamento héterocisnormativo.
Mesmo angustiada, segui em frente, ou fui levada pela correnteza, não sei bem. O ponto é que, de alguma forma as coisas foram acontecendo. Vieram namoros, empregos, universidade, rodizio de amizades e até um casamento. Tudo, absolutamente tudo para mim era insipido, nada me apetecia. Tinha três empregos (dois cargos públicos e um freelance na universidade) e ganhava super bem na época, mas viajar e consumir (infinitas coisas) não era exatamente o tipo de vida que eu queria, não daquele modo. Eu queria viver, e não me sentia viva.
Toda vez que me olhava no espelho e via minha imagem vestida, pronta para sair, ou receber alguém em casa, meu ânimo decaía, e só voltava a subir depois de algumas cervejas, basicamente, eu só sorria e brincava quando estava bêbada, e sempre me sentia mal depois, pois, na minha sobriedade eu era completamente infeliz, e não sabia o porquê.
Em um dia qualquer de 2014 eu me deparei com o termo transgênero na internet. Ah, sim... Não foi por acaso. Eu pesquisava muito sobre minha condição, mas tudo o que encontrava eram contos eróticos e uns textos completamente boçais (alguns bem reacionários), mas é como minha mãe diz: "Quem procura acha", e eu de tanto procurar achei. Quando li sobre pessoas trans pela primeira vez, fiquei impactada, mal consegui levantar da cadeira, era como se eu tivesse perdido completamente a capacidade de orientação espacial.
Na verdade, foi um mal-estar absurdo. Eu suei, tremi, empalideci, fiquei sem forças e minha cabeça girava mais que carrossel. Inicialmente eu comecei a pensar sobre todas as minhas angustias e conclui de que havia nascido no corpo errado. Depois, com calma e com mais leituras, agora procurando com um foco, comecei a ver que a transgeneridade era muito ampla e que eu mal tinha arranhado a ponta do iceberg. Levou alguns meses para que eu me reconhecesse definitivamente como uma pessoa trans. Depois veio a fase de conversar com a pessoa com quem casei. Era necessário. Lemos muitos e muitos textos e discutimos muito para tentar entender, algumas coisas que não eram compreendidas por parte dessa pessoa eu tive de explicar mais de mil vezes, mas no fim deu tudo certo, por assim dizer.
Recebi muito apoio, mesmo com minha transgeneridade declarada, parecia que nada havia mudado, pois só quem sabia era eu e minha ex. Bem, isso começou me frustrar novamente. E o que parecia ter sido uma luz no fim do túnel, transformou-se num efêmero brilho de um pirilampo. E tudo começou afundar novamente, meus ânimos, meus objetivos e minhas forças.
Bem, houve uma fase de angustias muito grande, mas certo dia eu me senti cansada. Cansada de interpretar papeis, cansada de viver para outras pessoas, cansada de me justificar, de me esconder para não magoar ou afrontar alguém, cansada de carregar rótulos que não me pertenciam verdadeiramente, cansada de ver a vida passar, e então, me abri para o mundo. Compreendi que ninguém nasce no corpo errado, mas a noção de corpo é completamente deturpada e estereotipada em nossa sociedade.
No momento em que eu coloquei meu nome (que até então era o social) nas redes sociais e mudei minha foto, parece que pude respirar de verdade. Senti-me leve, era como se tivesse retirado um peso dos meus ombros. No começo foi meio conturbado, tive de explicar para muitas pessoas sobre minha transgeneridade, tive de lidar com perguntas escabrosas, e comentários transfóbicos, fui perseguida na internet por alguns intolerantes e boicotada de alguns projetos e freelances por conta disso.
Fiquei um tempo pensando se havia feito o certo. Muitas pessoas me diziam que me declarar abertamente ser uma pessoa trans era dar um tiro no pé, pois, muitos empregos me seriam negados e relacionamentos então, só na base do fetiche. E confesso que isso me afetou durante um tempo, fiquei com medo, mas aos poucos, refletindo dia após dia, percebi que o medo não era meu, não era genuíno, era uma insegurança externa implantada em mim, preconceitos em forma de conselhos e preocupações, que por pouco não me levam para mais uma depressão.
Tudo ia devagar, lento, e não parecia ter mudado muita coisa, exceto pelo fato de me olhar no espelho e me sentir cada dia mais eu. Entre altos e baixos, decidi fazer mais do que expor meu nome e uma foto, decidi me engajar nos movimentos sociais nos quais acredito e passei a falar abertamente sobre feminismo, sexualidade, identidade de gênero, sobre a importância de levantar a voz frente a opressão e tal como era esperado, houve uma onda de retorno. De início foi negativa, pois, eu estava cercada de pessoas que pertenciam a uma bolha social; recebi ofensas, ameaças, represálias e até ataques contra minhas obras, de forma direta. Maaaaassss... Por acaso, uma professora me mandou um convite para participar de um debate com algumes docentes de diversas escolas de São Paulo.
Esse foi o evento divisor de águas. No meu momento de fala, eu expliquei para algumas pessoas o que era identidade de gênero, o que era sexualidade, expressão de gênero e sexo... parece óbvio, né? Mas aquelas pessoas me encheram de perguntas, me dei como exemplo e aí que as perguntas aumentaram. Tive o auxílio de ume professore com quem aprendo muito, e aos poucos as perguntas foram respondidas, ou talvez tenham se calado para evitar passarem por incapazes de entender, o que nunca devemos fazer; sim isso mesmo, se não entendeu, continue perguntando até compreender.
Esse evento ficou gravado e foi postado no facebook, lá tinha minhas redes sociais, e muita gente que assistiu à reunião me procurou para conversar, e nas conversas particulares eu me saía melhor que ao vivo, a timidez era grande, viu? Lembro-me que nessa fala, eu falei sobre crianças não possuírem gênero até certa idade, e isso despertou a curiosidade de muita gente, que veio falar comigo.
Algumas dessas pessoas eram professories e citaram meu nome em reuniões com suas escolas, logo, muitas escolas estavam me convidando para formações docentes a respeito de gênero e sexualidade, isso aumentou muito meu número de contatos, e consequentemente de leitories, sim, pois eu sempre deixei claro que sou escritora. De uma hora para outra eu vi minhas vendas de livros decolarem e recebi incontáveis feedbakcs que amei. Vale lembrar, que nem todo livro meu aborda claramente ou como proposta as questões lgbtqiap+. Bem, inicialmente fiquei feliz, mas esperando algo ruim acontecer, era como ter o tempo todo um aziago rondando.
Comecei a fazer postagens com conteúdo lgbtqiap+ e aí minha lista de contatos aumentou exponencialmente. Muitas dessas pessoas são da comunidade, outras são pessoas que querem conhecer o assunto para evitarem de cometer qualquer desafeto acidental com as pessoas que possam encontrar.
Quando retornei ao trabalho na escola, tudo estava diferente, todo mundo já sabia da transição, mas pela internet, não tinham me visto pessoalmente ainda. E adivinhem... Foi maravilhoso. Fui super acolhida, parabenizada e elogiada pela minha beleza (termo usado por elus), e sabe... Isso me colocou num novo patamar de vivência, de relação com meu corpo, com minha persona, com meu ser. A cada dia, mais e mais, eu estava me importando mais comigo e menos com as opiniões alheias, meu nível de segurança começou subir gradativamente.
Claro, existia toda uma questão de solidão, pois, não estava mais casada e já há algum tempo sozinha. Busquei relacionamentos em apps, bem, posso dizer que isso é uma desgraça atrás da outra, tomem cuidado se optarem por isso. É preciso saber que 99,99% das pessoas ali não buscam nada sério e quem busca tem um padrão, que muitas vezes não inclui pessoas trans. Então... Fica a dica!
Depois de reuniões escolares, fui chamada para um projeto que visa a criação de conteúdos para formação de docentes com a temática Diversidades. E lá fui eu. Mais e mais confiante, estudando cada vez mais o assunto, conhecendo noves autories e teóriques da diversidade e espalhando o que aprendia. Continuei postando conteúdos nas redes e sempre me marcando em algumas postagens como pessoa trans, e do nada, num belo dia, uma garota de uma produtora cinematográfica entrou em contato comigo, perguntando se topava uma entrevista. Bem, eu não tinha nada a perder e topei.
Nessa entrevista ela quis saber mais sobre mim, mais do que estava no perfil e nas postagens, ah, detalhe, antes de falar comigo ela vasculhou esse blog...huahaua... Bem, conversamos durante quase uma hora, expliquei sobre minhas vivências, contei um pouco da minha história e da minha trajetória, falei sobre meus projetos e tudo mais, ela agradeceu e disse que entraria em contato novamente. Meio que desacreditei. Mas aconteceu.
Ela me contatou me convidando para gravar um piloto de uma série que ela está planejando. Topei. Conheci outras pessoas trans nesse projeto, algumas eu tenho grande amizade e nos falamos todos os dias, outras sumiram, normal, acontece. Bem, gravei e meu nome, imagem e currículo foi lançado por aí no mundo cinematográfico. Foi um trampo curto, mas rentável e o melhor, nem precisei fazer coisas absurdas, só falar de mim e jogar RPG, foi simplesmente fascinante.
Vieram algumas lives sobre meus livros e novamente um contato inesperado. Ume amigue me convidou para publicar um livro numa editora em que elu trabalhava e adivinhem, topei. Lá se foi meu nome de novo lançado nas mídias da editora e mais uma vez vi minhas vendas subirem, meus contatos aumentarem e acessos nos meus livros do wattpad começaram surgir, isso porque eu raramente divulgo, mas foram me achando nas redes.
A editora em questão me convidou para organizar um projeto antológico, e eu aceitei. Até o dado momento já lançamos um livro organizado por mim (são 4 no total) e sigo publicando contos por essa editora, e logo mais acontecerá o lançamento de Glas Ocena, físico e digital, mas não parou por aí. Uma plataforma internacional me convidou para escrever para eles justamente porque tiveram contato com Ascensão e Pitangas e Caramelos, e acharam incrível o modo como abordo a questão lgbtqiap+. Bem, aceitei o convite e estou escrevendo textos para essa plataforma, logo mais colocarei links aqui para vocês consultarem e consumirem. rsrsrs. E essa semana fui chamada para um evento de abrangência nacional. ^^
Caramba Pricila, quanta coisa aconteceu. Pois é! E adivinhe como eu estou? Estupendamente feliz. Parece que depois que eu me abri para o mundo, o mundo se abriu para mim. Antes eu não apostava em minhas ideias, não levava nada adiante, qualquer frustração era motivo de desistência. Mas depois que me assumi trans, percebi que frustrações serão constantes e terei de lidar com elas, e também percebi que luta é um substantivo feminino (sacou? Esse é o título de um livro/documentário sobre a ditadura militar, mas pense na metáfora um pouco). Com uma identidade feminina eu soube que lutar será grande parte do que farei daqui para frente e isso é ótimo, ao menos para mim.
Ao contrário do que eu imaginava, que se eu me mostrasse para o mundo tudo ficaria escuro e cinzento, ficou tudo mais iluminado e colorido. Porquê? Simples... Porque antes não era eu. Eu não era autêntica, eu fingia e quando você finge, você não passa confiabilidade, você não tem segurança para agir, você está apenas interpretando e não sendo você. Mas depois que me libertei, passei a viver minha vida e me expressar devidamente, tudo mudou. Isso é atraente, a autenticidade gera bons fluídos e consequentemente, bons resultados.
O que eu pretendo com esse texto? Ora, lhe dizer que não importa quem você é, só seja você. Expresse sua verdadeira natureza, viva feliz. Sua felicidade é só sua, sua vida é só sua, você será a única pessoa que te fará verdadeiramente feliz. Não seja mais um covarde a apoiar a repressão, liberte-se! Não importa que seja estranho, diferente, bizarro, o importante é você estar bem consigo mesme. Enquanto viver escondendo-se o mundo, as oportunidades e as relações também vão se esconder de você. Nós nascemos para brilhar e não para atender expectativas.
Beijos da Pri! ^^
Você sempre foi um ser de luz, só que você não via o quão brilhante era. A transição te fez bem, te fez ver o que havia dentro de ti. Mas eu sempre vi.
ResponderExcluirOOOOOouuuunntttt sua peste, me fez chorar.
ExcluirTe amo muito.
Ah, Neko-chan que texto lindo, maravilhoso.
ResponderExcluirEsse é o espírito mesmo.
Eu sei. rsrs ^^
ExcluirObrigada por ler e comentar.