Eu e a bruxaria

 

Primeiramente acho bom esclarecer o que é a bruxaria. Então, comecemos por aí.

A bruxaria é um modo de vida e uma crença que visa a boa convivência, respeito aos animais, à natureza e auto avaliação constante. O caminho da bruxaria é repleto de reflexões, ações positivas e adoração pelo divino feminino. Claro, há deuses que representam o aspecto masculino e deuses que representam uma existência que não se encaixa em nenhum dos dois aspectos, e todas as divindades são adoradas e respeitadas, no entanto, a conexão com as deusas e com o sagrado feminino é muito forte, presente e inato às bruxas.

Uma bruxa é simplesmente uma mulher que se ama, se permite, se compreende, ou tenta se compreender, que não se dobra aos dogmas limitantes, opressores e incognoscíveis da sociedade em que vive. Uma mulher livre, emancipada, segura, estudiosa e que respeita e compreende seu lugar no mundo. é simples assim. 

Dá para se ter ideia do porquê eram perseguidas e queimadas durante metade da Idade Média e em datas mais recentes com episódios trágicos espalhados pelo globo, não é? Quem nunca ouviu falar das bruxas de Salém? 

A bruxaria é uma prática de orações e rituais pagãs que envolvem o enaltecimento espiritual, a conexão com o divino e com a natureza (que é parte do divino). Não existe bruxa má, não existe sacrifícios satânicos, aliás, na bruxaria não se cultua Satanás. É um erro comum de interpretação gerada por preconceitos antigos.

Quando falamos de Sagrado feminino, estamos falando de uma filosofia e um estilo de vida que promove ensinamentos sobre aspectos físicos, mentais e espirituais da figura feminina. É a consciência dos ciclos, da capacidade de criação e acolhimento e da força da mulher. É a reconexão consigo mesma e a harmonização de tudo isso com a natureza.

A bruxaria é a crença religiosa com maior nível de liberdade e aceitação que existe. Todas as pessoas podem praticar a bruxaria, podem aprender conceitos e ensinamentos e não existem dogmas que te obriguem a isso ou aquilo, não existem templos com líderes arrecadando dízimo, não existe uma vestimenta específica para se usar e ser identificada como praticante da bruxaria, qualquer pessoa ao seu lado pode ser uma praticante de bruxaria e você nem sabe.

Algumas bruxas se organizam e se reúnem em determinadas datas para celebrar esses momentos, essa reunião recebe o nome de coven, mas ninguém é obrigado a participar de um coven, ou de um único coven. 

Eu por exemplo, sou uma bruxa solitária e intuitiva. Já me reuni com outras bruxas e foi maravilhoso, mas prefiro manter essas reuniões de forma esporádica ou até episódica. É só uma condição pessoal minha, nada tem a ver com as pessoas, datas ou qualquer outra coisa.

Bem, já que comecei falar de mim, vamos partir de um ponto central; porque sou bruxa.

Sempre tive adoração pelo feminino, sempre me senti conectada com as forças que regem a figura feminina e também a natureza. Tenho um talento especial com ervas e animais, sobretudo canídeos. Em toda minha vida eu busquei meios de me conectar com algum aspecto divino, passei por diversas religiões, adoro todas elas, respeito todas elas, já não posso dizer o mesmo dos líderes religiosos. Mas enfim... Toda religião tinha um dogma que limitava minha essência, minha existência tal como ela era. E isso era nauseante para mim. Portanto, nunca passava muito tempo como fiel de uma religião. Até que no início da fase adulta me declarei ateia. E isso é bem interessante, pois, mesmo carregando esse rótulo, ficava encantada com a chuva, com as plantas crescendo, com a lua, com a condição da existência feminina e sempre admirando deusas de diversos panteões, o que encarava como admiração cultural e não espiritual; não poderia estar mais enganada.

Gosto muito de cachoeiras, trilhas, praias, matas, plantas, flores, rios etc... Certa vez, num acampamento, estava sentada pra fora da barraca observando o céu mais maravilhoso do qual me lembro, as estrelas estavam nítidas e a lua brilhante como se gritasse para chamar atenção no palco escuro onde ela era a única atração. Naquele dia fui tomada por uma sensação indescritível, enquanto observava o céu, respirava relaxada tentando me concentrar somente na abóboda celeste e por um ínfimo período de tempo me senti desprendida do meu corpo, me senti conectada a tudo ao meu redor, pude sentir o ar, o frio, os grilos, os vagalumes, tudo, tudo mesmo, senti um formigamento estranho correr pelo corpo todo e passou; a sensação que antecedeu o formigamento é um mistério para mim, nunca encontrei meios de explicar, só posso dizer que foi fascinante. Nunca mais senti algo parecido, mas naquele momento eu entendi que havia muito mais forças regendo o universo das quais podemos nos dar conta e compreendi que meu caminho espiritual era aquele, o contato com a natureza.

Depois disso lia algo aqui e ali a respeito de religiões pagãs e acabei me deparando com os escrito wiccanos. Me foram muito uteis, de verdade, mas ainda existia algo que me incomodava na religião Wicca, e era justamente o nome da religião/crença. Eu sei que a crença, os escritos não estabelecem regras de liderança tais como aparecem nos encontros, mas o ser humano é guiado pelo ego e cedo ou tarde ele aparece. 

Conforme me aprofundava nas leituras, conheci muitos textos antigos, alguns traduzidos, e outros tive de traduzir do irlandês e do gaélico, com ajuda de uma professora do curso de letras, que se interessou muito pelo meu "projeto". Com esses textos entendi que a bruxaria sempre foi praticada de forma solitária e que covens eram raríssimos, até porque ninguém poderia saber da existência de tais reuniões, qualquer número de mulheres maior que dois reunidas ou caminhando por aí, era visto com desconfiança e poderia render acusações e uma fogueira. 

As bruxas sempre trilharam caminhos solitários. Passavam seus conhecimentos para outras mulheres geralmente através da oralidade, pois, cadernos e pergaminhos de anotação eram provas irrefutáveis de cultos ao Satanás. Cada bruxa criava seus rituais, suas orações e se conectava com o sagrado de uma maneira única.

Percebi que as leis da bruxaria se referem sempre ao respeito para com o divino e a natureza, e também respeito à si própria. Isso me chamou muito a atenção. Comecei estudar alguns rituais e orações e testá-los. Alguns resultados eram satisfatórios, outros não, não só no sentido da "recompensa", mas da execução também. Alguns rituais me deixavam vazia, aérea ou indiferente à prática, eu não sentia conexão com eles. Então passei a criar minhas orações e meus rituais. Mas algo me faltava, toda aquela prática me fazia bem, porém, era como se eu estivesse entrando numa igreja cristã, sem um fundamento real para mim, entende?

Eu me percebo trans desde a adolescência, mas quando aceitei isso, a bruxaria me ajudou muito. Minha conexão com as forças universais se intensificaram, cada oração, cada ritual, cada observação era feita com primor, era como se a mulher que sempre esteve acorrentada dentro de mim tivesse saído e assumido o controle dessas práticas. Me questionava a respeito dos covens, se me aceitariam, se me entenderiam, se aprovariam minhas práticas solitárias, e deu-se que no primeiro coven que participei, numa conversa com uma senhora, contei sobre minha condição e ela me surpreendeu dizendo que nem precisava ter dito, meus olhos diziam tudo. 

Pratiquei a bruxaria durante anos antes de me assumir para o mundo, e durante todo esse tempo, esses rituais me fortaleceram de um jeito inexplicável. Reuni força, coragem, confiança em mim mesma, eliminei dúvidas a meu respeito, muitas coisas das quais eu não me achava capaz, simplesmente desapareceram, e a cada novo ciclo lunar eu me sentia mais próxima de quem eu sou hoje. Cada rito era uma peça do quebra-cabeça que era encaixada no quadro. 

Sempre que me sentia para baixo, eu consultava minha consciência, guiada por algum mantra ou mesmo artifícios naturais e sempre, sempre encontrei respostas, as vezes eu não as entendia, e só compreendia seu significado tempos depois.

Foi durante as práticas dos meus ritos que percebi que não somos mais do que cascas portando uma essência, e pouco importa a forma que essa casca tem, um dia ela alimentará a terra, tal qual nos alimentamos dela, o que permanecerá será nossa essência, que será levada para planos espirituais, ou cósmicos e trilharemos novos caminhos a partir daí. Com essa compreensão, foi fácil me assumir. Eu me entendi, me aceitei e percebi que o sagrado feminino sempre residiu em mim de maneira substancial, inata.

Depois de pensar muito, percebi que não teria como ser diferente. Sempre fui uma bruxa buscando me encaixar em lugares aos quais eu não pertencia, inclusive a imagem que eu alimentava de mim mesma. E olha que durante um tempo duvidei de cada rótulo que assumia, mas o tempo se encarregou de tudo.

Hoje, eu gosto de quem sou, de quem me tornei, deixei meus traumas para trás, deixei muitos pesares pelo caminho e tenho consciência do lugar que ocupo no mundo. As práticas da bruxaria servem exatamente para isso, abrir nossa mente, nossa visão e nosso coração.

Atualmente eu trago para minhas práticas e minha crença, divindades que ocupam o panteão indígena, por uma questão cultural de família e porque na essência representam a mesma força universal que as divindades celtas, gregas, egípcias e etc. 

Então, porque sou bruxa? Por que sou uma mulher livre, que se ama e se permite amar, que questiona, que não se dobra à opressão voluntariamente e nem à subserviência, questiono meus atos e transformo minhas ações em sementes. Sou bruxa porque não teria como ser diferente. É o único conjunto de crenças que me representa e que me aceita como sou, pelo que tenho por dentro.

É isso!

Beijos da Pri !!! ^^