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domingo, 18 de outubro de 2020

Transfobia no trabalho

 


Antes de começar, quero dizer que apesar desse tema ser recorrente, as experiências aqui relatadas foram vividas por mim, e é com muito pesar que digo que não sou só um caso isolado, mas que esse tipo de coisa acontece com muita frequência.

Ser uma pessoa transgênero é estar sempre em guerra, nunca poder relaxar, nunca poder esperar a hora acontecer, não se sentir confortável em todos os lugares, precisar estar sempre alerta ao seu redor, e ter que lidar com inúmeras situações que podem (e na maioria das vezes o fazem) abalar sua estrutura emocional e psicológica.

Eu trabalhava em escolas de ensino infantil, porém, esse ano de 2020 fui convidada para integrar outro espaço público, um projeto infantil, mas diferente do que eu estava. 

Assim que cheguei, percebi diversos olhares cruzados, era a primeira semana, tinha toda a questão de integração e tal, e o fato de eu aparecer com uma camiseta da mulher maravilha, e calças mais justas, geraram muitos desses olhares julgadores, tanto que decidi falar com a chefia.

Isso depois de várias insinuações por parte dela sobre minha pessoa no meio de todo mundo. Sim, em rodas de conversa e orações, era dito por parte dela coisas como "a gente percebe que nem todo mundo tem a mesma opção sexual... mas os meninos vão ensinar coisas de meninos para os meninos, e as meninas coisas de meninas para as meninas."

Pensei eu que falando com a responsável pelo projeto, ela como um ser pensante e que está sempre estudando e discutindo assuntos sociais, teria melhor acolhimento e poderia me sentir segura no meu local de trabalho. Até porque, ela estava completamente errada a meu respeito. Bem, só pensei mesmo.

Eu disse a ela que não era uma pessoa cisgênera, e ela disse que havia percebido, bem, pelas palavras dela, ela acreditou que eu estava dizendo que era um rapaz homossexual. Tentei ser o mais didática possível e expliquei que me sentia dividida entre o universo feminino e algum outro que não conseguia identificar, que fazia terapia e que reforçar sobre mim um estereótipo de gênero, me era incômodo. A princípio ela pareceu muito compreensiva, perguntou mais de uma vez sobre minha identidade de gênero, parecia mesmo que estava tentando entender.

Alguns dias depois ela me chamou para uma nova conversa, e foi aí que tudo foi por água abaixo. Durante a conversa ela me disse coisas horríveis, como por exemplo: que minha identidade era perigosa, e que nem todo mundo iria entender, e que ali, naquele ambiente, era para eu usar uma máscara, fingir ser alguém que não sou e descarregar tudo na terapia. Você têm noção do que aconteceu aqui?

Ela impôs sobre mim uma condição transfóbica e heterocisnormativa. Disse que não podia prever a reação das pessoas e que colegas de trabalho poderiam usar minha identidade de gênero para me prejudicar. Eu fiquei furiosa, tão enraivecida que não consegui olhar para ela, menos ainda argumentar, deixei ela expelir sobre mim todo o veneno transfóbico que carrega.

Acontece que essa não foi a única vez. Em todos os momentos, ela sempre se referia a mim como uma pessoa cisgênera e sempre me encaixava num grupo o qual ela acha que eu pertenço, baseando-se apenas na minha aparência física e nome de matrícula. Infinitas vezes me apontou como membro de um grupo cis, sabendo da minha condição.

Durante a pandemia, tivemos muitas reuniões on-line, e ela sempre fazia questão de dizer o nome dos meninos e das meninas, sim separando por gêneros. 

Por esses e outros motivos expressei minha completa insatisfação em trabalhar no projeto. E adivinhem só o que aconteceu? Sim, uma nova reunião comigo.

Essa reunião durou seis horas. Me foi perguntado meus motivos de querer largar o projeto e eu disse de cara o que pensava do projeto. Coloquei meus pontos e meus anseios profissionais e ela compreendeu. No entanto, quando eu expliquei que na escola eu poderia desenvolver projetos diferenciados para educar as crianças a respeito da diversidade, ela colocou um monte de barreiras sobre mim, e tudo, absolutamente tudo o que eu dizia ela retrucava com uma compreensão totalmente distorcida. Por exemplo: eu falei para tentarmos replicar no projeto, uma ação que foi feita em uma escola infantil, que foi pintar as portas dos banheiros com cores variadas e retirar a identificação de masculino ou feminino. Ela disse que não implementaria essa ideia porque não usaria o mesmo banheiro que um homem, por conta da má fama masculina a respeito da higiene nos banheiros. Ok, mas percebem que em momento algum eu citei mudar o banheiro dos adultos? Pois bem. Tentei novamente explicar, ela cortou minha fala e despejou sobre mim uma verborragia infinita. 

Quando apresentei outros pontos, a respeito da não-binariedade, ela articulou diversas falas para me desestimular das minhas ideias de projetos educacionais. Primeiro ela disse que ali, não era um ambiente seguro para eu me mostrar, para eu realizar essas "coisas". No final da conversa, percebendo minha convicção, ela disse que aceitaria minha saída do projeto caso eu quisesse mesmo deixá-lo. Engraçado que outras pessoas não podem sair do projeto assim tão fácil. Enfim... Tem muita coisa ainda.

Sabe, ela me dizer que o ambiente não é seguro para mim, para que me expresse, só mostra uma coisa. Que ela está numa zona de conforto e não quer se mexer, não quer estragar seu lindo mundinho cristalizado sobre os ideais opressores da sociedade. Ela não quer ter trabalho com as pessoas responsáveis pelas crianças que frequentam o projeto, não quer ter trabalho com as pessoas que trabalham no projeto e nem com as pessoas que estão acima dela na cadeia de comando. Sim, pois, permitir que eu me expresse, geraria um movimento muito grande no ambiente. São muitas adequações a serem feitas, são muitas explicações e certamente teria de lidar com um caso ou outro de lgbtfobia. O que ela não quer. Pois isso gera conflito, e ela não quer ser vista como uma pessoa que assume os conflitos em prol da transformação social, não, ela quer ser vista como a senhora perfeitinha que lidera um projeto sem "defeitos", sem conflitos, hipócrita e obediente.

Bem, voltando ao eixo, por meio de nossos canais e reuniões, sempre lançava uma ou outra mensagem a respeito de organizar um momento para que eu conversasse com todas as pessoas que trabalham lá afim de instruí-las a respeito de identidades de gênero, sexualidade e sempre mostrando o quão importante isso é para construirmos um ambiente saudável. Até porque, trabalhamos na educação, onde as pessoas deveriam ser bem instruídas e abertas às discussões sociais. Numa reunião disse que todes deveríamos lutar juntes, afinal todos os grupos são interdependentes na luta pelos seus direitos, se um cai, enfraquece toda a estrutura. Mas como sempre, meus ideias e falas foram jogados para baixo do tapete.

Tentei chegar a algumas pessoas, levando mensagens individuais. Algumas receberam muito bem a ideia e já mostraram seu apoio. No entanto, nenhuma dessas pessoas é da equipe que gere o projeto. Para essas também apelei para a individualidade, e adivinhem só...

Uma dessas pessoas, a qual eu realmente admirava, por se mostrar inteligente, politizada, revolucionária e engajada na luta pelos movimentos sociais... Me decepcionou enormemente. Eu lhe enviei um convite para uma live onde discutiríamos questões sobre gênero na escola, a única coisa que essa pessoa disse foi "escritore (na minha identificação do flyer) está errado." Eu expliquei que era por conta da linguagem neutra, e que não estava errado. Bem, essa pessoa teimou novamente dizendo que na língua portuguesa "escritores" já é neutro, mas ela não se preocupou com o artigo, nem mesmo perguntou o que é linguagem neutra, ou seja, ignorou completamente e não assistiu a live, nem mesmo a gravação da mesma.

Depois que criei o blog mandei alguns links de postagens para essas pessoas e nenhuma delas sequer clicou no link, sim, elas todas admitiram isso. Bem, sou educadore e a gente demora para desistir. Mandei para essas pessoas um vídeo do canal "Põe na roda" (excelentes conteúdos) que fala sobre crianças trans, e mais uma vez o conteúdo foi ignorado. Inconformada, eu questionei se haviam visto. A pessoa que eu mais admirava me diz simplesmente que não leu os textos nem viu o vídeo, mas "é isso continue na luta!" ... Entende o que é isso? Um verdadeiro sectarismo e arrogância clara.

Poxa, são pessoas que estão na liderança de um projeto educacional de muita importância para o desenvolvimento infantil e também para o desenvolvimento do nosso futuro e do de todas essas crianças. Só que estar nesses cargos não significa que você é capacitade para isso. Entenda que aqui não estou falando de diplomas ou tempo de serviço, estou falando de capacidade mental para romper as amarras sociais que nos oprimem há milênios. Estar nesses cargos, na verdade, é muito confortável, porque é só seguir regras estabelecidas que visam perpetuar um sistema heterocisnormativo, racista, misógino, gordofóbico, corrupto, capacitista, cheio de imposições religiosas e completamente hipócrita. Pronto, sentar-se numa cadeira e fazer a roda girar como sempre foi. Só que não estamos mais no século dezenove ou até mesmo no vinte, onde essas coisas eram banalizadas e aceitas pela população por falta de instrução. 

Hoje na era da informação, todes são capazes de alertar ao mundo todo sobre suas barreiras e buscar conhecimento para driblá-las. Fazer uma pesquisa para evitar cair nas armadilhas sistêmicas, deveria ser obrigatório para educadores. Mas elus se sentem acima de tudo isso. Possuem a arrogância de achar que sabem de tudo e de que podem ignorar as lutas sociais nas quais não estão inserides. Essas pessoas que venho falando no texto, defendem muito a religiosidade e a união, mas quando falamos sobre qualquer assunto que elus não dominam ou não querem dominar, ignoram nossa fala completamente.

Sim, o que eu estou dizendo é que nesse local eu fui sufocada, excluída, desrespeitada e invisibilizada. Minha identidade de gênero não é importante nem desejável para esse ambiente, ali se não for hétero, cis, cristão, acadêmico e aburguesado, você simplesmente não tem lugar de fala nem qualquer importância para o projeto como um todo. 

Não se pensa em representatividade, não se aplica verdadeiramente o conceito de diversidade, não se respeita a religião não cristã, e esse último caso é muito especifico meu, porque eu odeio orações em grupo, porque sei que se eu quiser compartilhar minhas crenças em grupo, não terei espaço para isso, no entanto, sou posta no meio de uma roda de oração cristã.

Essa liderança é transfóbica e retrograda. Simples assim. Não conseguem perceber que o que estão fazendo não é educação, mas sim propagação dos ideias opressores, ou seja, bem o oposto do sentido da educação.

Essa quarentena me foi muito útil, pois, antes eu estava num limbo onde minha não-bináriedade era nova para mim, e eu tinha a ideia de que precisava de permissão para me expressar, hoje não. Minha identidade virá à frente de qualquer coisa e ninguém é obrigado a entender, mas terão de respeitar. Durante esses meses em casa, pude refletir muito e me enxergar melhor, me entender e compreender quais são os limites do que eu aceito ou não. Sou educadore e como tal, sempre defenderei a educação libertária, onde o ser é amplamente desenvolvido para viver em sociedade com todas as suas diversidades, não aceito menos que isso. E nesse projeto, não vou conseguir fazer isso, porque as pessoas que o lideram já fizeram questão de se mostrar resistentes, opositoras e sectaristas em relação à diversidade.

Sei que o texto foi longo e carregado de emoção, mas é necessário. O meu intuito com essa postagem é denunciar as cadeias de comando na educação e as relações de poder que ocorrem no microcosmo da instituição, e também mostrar a você que nunca poderemos parar de lutar, não podemos abaixar a cabeça, e não iremos encontrar caminhos fáceis, principalmente lidando com pessoas que são ignorantes por opção.

Mas não desistiremos!!!

Beijos da Pri!^^

6 comentários:

  1. Sempre muito coerente! Parabéns por manter-se nessa luta, sei q não é fácil!
    Te admiro! Amo ler teus textos!!!👊🏽🤩😍💞💞💞💞

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    1. Obrigade, de verdade! É reconfortante saber que ainda existe na educação pessoas que são humanas e não fantoches. ^^
      Eu é que admiro você!!!

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  2. Nossa, lendo teu texto que, por sinal, é super importante, só conseguia pensar no meu trabalho. E como sei que também passarei por isso quando começar a me afirmar na minha identidade de gênero. Vou compartilhar seu texto!

    Franz Andrade

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    1. Pois é amiga, firmar sua identidade num ambiente opressor é de fato uma tarefa que exige de nós um esforço monumental. Mas apesar de todas as dificuldades, esse trabalho é importante, essa ação de se afirmar, sabe? Pois, além de conquistar nosso espaço, ainda mostramos a outras pessoas que é possível.

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  3. É chocante ainda nos dias atuais nos depararmos com atitudes conservadoras. A covardia das pessoas em não ter empatia para lutar pela igualdade fere a alma. Como você disse, essas pessoas não querem sair de sua zona de conforto para lutar por algo. E, muito menos, algo que eles não aceitam. O preconceito é maior do que a humanidade que eles carregam sobre os ombros. Infelizmente. Parabéns pelo texto. Parabéns pela força 👏❤

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