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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Passabilidade

 Esse termo é um verdadeiro fantasma que assola e oprime a comunidade trans e não-binária. Passabilidade é a característica atribuída a uma pessoa trans que se parece muito com a imagem idealizada de uma pessoa do gênero ao qual ela se identifica. 

Vou explicar melhor. Quando falamos de homem e mulher, geralmente em nossas cabeças surgem imagens de pessoas cis, fomos educados assim e somos bombardeados por essas imagens e conceitos. Então quando um homem trans, se parece absurdamente com a imagem ideal de um homem cis, ou quando uma mulher trans se parece muitíssimo com a imagem ideal de uma mulher cis, diz-se que essas pessoas são passáveis, preste atenção no absurdo.

Passabilidade... O próprio termo é problemático por inferir a ideia de que pessoas trans se passam por cis. Parece que ter passabilidade é uma forma de enganar o resto do mundo, para mostrar uma imagem que não é sua. E esse termo fica mais problemático ainda quando nos debruçamos sobre ele e suas implicações.

Pessoas trans e NB, geralmente optam por adquirirem passabilidade como medida de segurança. Sim, pois, o Brasil é um dos campeões em assassinar pessoas trans e travestis. E algumas dessas pessoas são identificadas fisicamente, por não estarem enquadradas em parâmetros sociais e estéticos impostos a nós. Ser passável pode garantir à pessoa certo nível de segurança e também de satisfação. Muitas pessoas, cis ou não, e independente de suas sexualidades, são reféns dos padrões de beleza impostos pela sociedade, e fazem de tudo para se adequarem à imagem da perfeição. 

Não é errado ser passável, ou desejar ser. Desde que esse desejo seja algo genuíno, e não uma fuga desesperada, ou uma vontade inenarrável de pertencer a um grupo cheio de regras hipócritas.

Muitas pessoas trans optam pela passabilidade para não ouvir frases preconceituosos o tempo todo, para não sofrerem desgaste emocional, não se tornar um alvo ambulante e não sofrer com rejeições e solidão. No entanto, tudo isso faz parte do pacote de imposição social. Claro que cada caso é um caso, mas o que eu quero deixar claro, é que a passabilidade é um conceito problemático e não é obrigatória.

Existem pessoas bigênero, Gênero fluido, trigênero, poligênero, não-bináries, intersexo... O que seria a passabilidade para essas pessoas? Algo inalcançável. Essas pessoas estou além da binariedade, então, a imagem estereotipada de um gênero não lhe pertence. Obviamente há pessoas que desejam possuir determinados aspectos físicos e recorrem à hormonização ou cirurgias. Essas opções tem muito a ver com o que a pessoa deseja para si, obvio que nem todas as pessoas que passam por isso, o fazem para agradar outres e não a si próprie, na verdade, não para agradar outres, mas para não serem mais apontadas, julgadas e torturadas de infinitas maneiras por essas pessoas. Eu sei que é complicado e falando assim, a passabilidade parece algo monstruoso, e se ela for influenciada por discursos estéticos de aceitação social, sim, realmente é um conceito monstruoso. Mas se for completamente opcional, é lindo. Pois, você estará entrando em contato com o seu interior e externalizando o que vê dentro de si há muito tempo.

Nós, pessoas tran e NB, precisamos ter a consciência de que passabilidade é um desejo e um direito da pessoa, e não uma obrigação. Se conseguirmos entender isso, muito do nosso sofrimento será reduzido. No entanto, existe uma forte pressão dentro da comunidade mesmo, que só aceita como trans, a pessoa que tem passabilidade. E veem as pessoas NB como alguém quase alienígena. Negam nossa existência, nossa história e nossas experiências.

A comunidade LGBTQPIA+ também precisa se dar conta de que ser passável não é o desejo de toda pessoa trans, e que isso não deve ser uma meta nossa, e nem interferir em nossa representatividade. Nesse sentido, de que é aguardada a passabilidade de uma pessoa trans, esse conceito é nocivo e repulsivo. 

Nós, não devemos nos espelharmos em imagens cis para nos satisfazermos com nossos corpos. Somos diferentes, sempre seremos, e isso é magnífico, nos tornam úniques. Nós precisamos nos amar, nos aceitar e obviamente nos cuidarmos. Qualquer alteração que fizermos em nossa aparência física deve ser para orgulho e agrado próprio, nunca por pressão externa, do contrário, só estaremos alimentando ainda mais essa ideia de corpos perfeitos, discursos cisnormativos que causam tanta disforia, depressão e até mortes.

Ninguém é obrigade a mudar seu corpo para atender a regras sociais. As pessoas cis geralmente não conseguem acertar pronomes de pessoas NB ou trans sem passabilidade, porque estão apegadas demais com a imagem cristalizada de que só existe uma configuração física para homens e uma para mulheres, e nem levam em conta outras identidades de gênero. E nós não podemos nos dobrar a essas incapacidades. 

O que eu quis dizer com todo esse texto é o seguinte: Não se iludam com passabilidade. Ela não é obrigatória e não vai resolver todos os seus problemas. A culpa de optarmos pela passabilidade mesmo não concordando, não é nossa, é da sociedade que impõe e exige que tenhamos padrões aceitáveis de aparência, discurso que é muito difundido na comunidade LGBTQPIA+ também. Se você quer adquirir as características que comumente são associadas ao gênero que você pertence, faça por vontade própria e não por opressão. Lembre-se que além da aparência, outros aspectos ainda são tabu na sociedade, como voz, nomes, modo de agir, vocabulário, gostos e preferências, habilidades, desempenhos físicos e motores, propensão à expressão de emoções ou a não propensão, cuidados estéticos e até mesmo trabalhos domésticos. Então esteja ciente que sua aparência é apenas a primeira linha de cobranças sociais que você encara na sociedade heterocisnormativa. Liberte-se dessas correntes!

Beijos da Pri!!! ^^         

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