Que esse desenho é maravilhoso, isso todo mundo já sabe.
A internet está cheia de postagens sobre She-ra, diversos blogs, sites e canais de vídeo abordaram o tema, cada ume a sua maneira. Eu, nesse post, vou deixar minhas impressões sobre o desenho, o que eu gostei, o que não gostei e comentários particulares. Não estou aqui para dizer algo certo ou errado, é só minha opinião, meu ponto de vista e minhas sensações a respeito da obra.
Para começar quero apontar o fato de que Noelle Stevenson, a criadora, abordou diversos temas muito complexos num único universo e o fez com maestria. A DreamWorks produziu a animação, e sinceramente, durante muito tempo fiquei com medo que a série fosse cancelada por tratar de temas relacionados à aceitação de modo geral. Esse medo foi gerado depois de ver a Netflix ceder à pressão religiosa e cancelar Super Drags, e não apostar num público fora dos padrões e cancelar Sense8. Bem, mas a DreamWorks estava em dívida conosco desde Avatar: a lenda de Korra, sim, pois durante toda a série ficou evidente que a relação de Asami e Korra era bem mais que amizade, porém, no momento crucial, onde deveria nos ser entregue o mais belo presente, que seria a concretização desse relacionamento, a DW nos privou disso.
Não sei se as reclamações dos fãs surtiram algum efeito, ou se o sucesso imediato de She-ra teve algo a ver com isso, o fato é que a DW prosseguiu com a produção até o final e não interferiu na obra da Noelle. Tudo foi produzido como a criadora desejou e ficou muito bom, não era para menos.
Bem, mas do que é que fala esse desenho afinal? Cada pessoa que assistir à série vai captar determinadas mensagens ali, mas para mim, o desenho fala de amizade, de amor, de superação, de aceitação das diferenças, de conflitos éticos, de propagar a paz e combater os males que invalidam a vivência das pessoas, tudo isso de maneira lúdica e divertida.
Vemos a diversidade nas próprias personagens. Tem pessoas pretas, gordas, crianças, autista, transgêneros, não-binários e de diversas sexualidades. Acho muito interessante o fato de todas as mensagens serem passadas através de metáforas (bem, até certo ponto) e que no final, essas metáforas se auto explicam. As maiores metáforas para mim são apresentadas através das personagens Arqueiro e She-ra/Adora.
Há um episódio em que o Arqueiro vai visitar os pais (sim, dois pais e os três são pretos ^^) e ele pede para a Cintilante que o ajude a inventar uma história a respeito de sua vida, pois, ele quer que os pais pensem que, assim como eles, ele tenha se tornado um historiador/arqueólogo, mas ele se tornou algo bem diferente, um guerreiro revolucionário. Quando os pais descobrem, ele chora e confessa a eles, explicando que mentiu para que eles não se chateassem, não ficassem envergonhados ou bravos... E aí eles dizem que o aceitam como ele é, sendo quem ele é. Uma nítida metáfora para as pessoas que se trancam no armário (não se revelam LGBTQPIA+) por medo de aceitação, violência, abandono, solidão etc. É meio que um recado para todes, pais/mães e filhes que vivem nessa condição. Sair do armário, nem sempre é ruim, claro que não é fácil e cada caso é um caso, mas as vezes projetamos nossos medos sobre nossa realidade, vivemos o medo e não nossas vidas.
A metáfora da Adora/She-ra é um pouco mais longa e fragmentada, pois envolve vários episódios. Mas o resumo é seguinte: Adora tem uma carga profética sobre os ombros e devido a isso, atitudes, pensamentos, comportamentos e resultados são esperados dela. Durante muitos momentos ela é questionada e comparada com a She-ra anterior, porém, ela acaba percebendo que ela não é como a anterior, ela é diferente e sempre será, e nunca deve ser igual a ninguém, porque sua existência, suas experiências são únicas, e é esse conjunto de experiências que sintetizam sua persona. Ou seja, outra metáfora sobre aceitação. Muitas vezes, nós (independente de sexualidade, ou qualquer categoria que exista para definir grupos sociais) nos punimos com esse martírio. Nos comparamos com outras pessoas, pesamos nossos feitos e elevamos a importância dos feitos alheios enquanto invalidamos os nossos, isso tudo por não nos conhecer, não nos aceitarmos, não compreendermos que cada ser humano é único e como tal, possuirá conjuntos únicos de experiências durante toda sua vida. E todas as vidas são importantes, todas as vivências são válidas e maravilhosas. Só para estender um pouquinho esse assunto, vejo na She-ra o conceito de "super homem" criado por Nietzsche. A Adora deixa seu estado humano para trás e assume uma postura elevada, com muita humildade, amor, carisma, mas superior ao estado natural de ser humano.
As princesas, são todas guerreiras, mas nenhuma delas possui a mesma personalidade. Esse fato é facilmente percebido, e enriquece demais o desenho. Porque não é uma superficialidade criada para distinguir uma personagem que entra em cena, ao contrário, a personagem entra em cena porque possui esse diferencial, e elas carregam isso impresso em seu semblante, em suas palavras, ações e relações.
Um lance que gosto muito, é o fato da Entrapta ser autista e não ser dependente das outras. Isso significou para mim, que a criadora quis dizer que não importa se você tem uma síndrome (depende do grau da síndrome, óbvio), você pode viver sua vida de forma digna e independente. Bem no final, a Serena se irrita com a Entrapta e dá um choque de realidade nela, dizendo que ninguém é obrigado a aceitar tudo o que ela faz, e que nem tudo tem que ser feito do jeito dela. Bem, isso é verdade. Existe aqui muito pormenores, mas no caso da maga tecnológica, o autismo dela é leve, e não é pelo fato dela ser autista que ela pode fazer o que bem quiser com as pessoas, tratá-las da forma que quiser e fingir que o mundo todo gira ao seu redor, afinal, ela convive com outras pessoas. Entendam aqui, que o que a Serena quer dizer é que a Entrapta tem condições de entender as pessoas ao seu redor e interagir melhor com elas, no entanto, ela ignora-as por livre e espontânea vontade, mesmo quando precisa delas.
Noelle disse numa entrevista que todas suas personagens são gays até que se prove o contrário, bem, desnecessário dizer o quanto isso é lindo, né? Por quê? Porque quebra a lógica heteronormativa. Quando você pede para uma pessoa imaginar um casal, geralmente elas imaginam um casal hétero e cisgênero. E com essa afirmação, a Noelle rompe com essa imposição sistêmica.
Double Trouble é uma das minhas personagens favoritas. Acho que é bem óbvio né? A personagem é não-binária, possui um poder de transmutação, mas não é esse poder que molda sua personalidade, muito ao contrário. O poder de transmutação acaba auxiliando sua personalidade e sua condição não-binárie, pois, elu não precisa ficar presa numa forma. Não que a forma seja importante para uma pessoa não-binárie, mas no caso específico de Double Trouble, elu usa essa mudança de forma para fluir por sua personalidade, sexualidade e existência. É um bônus que elu recebeu. ^^
Bem, vocês me matariam se não falasse da Felina, né? rsrsrs
Eu gosto demais dessa personagem. Desde o início eu percebi algo muito íntimo irradiando da dupla Adora e Felina, no entanto, no começo da série, cheguei a pensar que fosse algum sentimento de irmandade, pelo fato de ambas crescerem juntas e serem meio que cúmplices e parceiras de combate. Mas no decorrer da série, notei que o sentimento de perda da Felina era muito mais propenso a uma perda romântica que familiar, e aí fui catando caquinhos e arrisquei numa paixão secreta. Percebe-se desde o início que Adora gosta muito dela, mas não demonstra esse sentimento romântico com clareza, não que eu tenha percebido, mas a preocupação que a Adora tem pelo bem-estar da rival é admirável, e isso me confundiu diversas vezes na série, mas aí no final épico 😍 tudo fica muito claro. A cena da declaração foi linda, não pelas palavras, não pelo momento em si, mas por conta da construção, lenta e bem arquitetada que a série montou e nos apresentou, de certa forma, nós esperávamos aquilo, mas a Noelle e DW fez com que nos parecesse surpresa, é simplesmente demais.
O que eu não gostei foi o fato de algumas personagens serem pouco trabalhadas, as personalidades pouco aprofundadas e limitar a trama às princesas. Eu sei que se fossem dar maior visibilidade para todas as personagens a série ficaria gigante, e esse talvez tenha sido o medo da DreamWorks, alongar a série, perder público e a Netflix cancelar. A Noelle produz Histórias em Quadrinhos de She-ra, não tenho conhecimento de nenhuma edição em português, mas seria maravilhoso se tivesse. Outro ponto negativo achei na série é que a única personagem idosa com relativa importância no seriado, tem uma personalidade esquizofrênica, e perturbada. Por um lado, é legal, uma personagem com outro olhar das coisas e sendo importante, mas por outro lado, a imagem do idoso, ao menos para nós aqui no Brasil, é de alguém, chato, confuso, reclamão, e que se torna rapidamente um fardo, justamente por conta dessas características. Talvez isso seja uma percepção somente minha, por estar próxima de pessoas idosas que recebem esse tipo de tratamento, mas sei lá, isso me incomodou. Outro fato foi a ausência de uma protagonista surda ou cega, poxa, tinha tanta representatividade ali, cabia mais uma. Tá, tá, tudo bem, não é uma crítica à Noelle ou a DW, mas senti falta e acho que seria muito maneiro se tivesse uma princesa surda ou cega. A série fica menos maravilhosa por isso? De forma alguma, não podemos exigir que uma artista aborde todos os temas do mundo e represente todas as pessoas do planeta, mas acredito, que em obras futuras dela, algo do gênero irá a parecer.
Além desses pontos, a série traz outros temas, como: arrependimento, autopiedade, sofrimento pela perda de entes queridos, exploração por conta da tirania, religiosidade e esperança. É uma série da qual eu poderia falar pelo resto da vida, e o farei, mas não tudo de uma vez, né?
Espero que tenham gostado e caso tenham uma visão diferente da minha sobre qualquer aspecto, não hesitem em comentar.
Beijos da Pri! ^^
#vivaoamor #diversidade #naobinarie
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